“E o Verbo se fez carne…”

 

“… e colocou sua tenda no meio de nós.” (Jo 1,14). Como poderia alguém sintetizar de modo melhor o grande mistério que a festa do Natal do Senhor nos ajuda a reviver a cada ano?

A grande solenidade para a qual nós estamos preparando não é, e nem pode ser, reduzida apenas à “lembrança de um aniversário de nascimento”. Como é vazio tudo isso! E com certeza, quando entra o vazio, este deve ser preenchido. E como fazê-lo?

Pois bem, é só dar uma olhada ao nosso redor. Não precisa muito para perceber o “mito” que se criou em torno de uma verdade. Estamos percorrendo o processo inverso dos primeiros cristãos os quais necessitaram de vários anos, grandes percas, sacrifícios de vidas e de bens para poder substituir os mitos pagãos com a comemoração deste maravilhoso evento que é o nascimento de Jesus, homem-Deus.

É importante, neste momento, primeiramente indicar o que aconteceu na cultura pagã com o ingresso do cristianismo para que, depois, possamos refletir sobre o significado das palavras de São João citadas acima.

É fato notório que nãos e conhece a data de nascimento de Jesus, principalmente porque na época nãos e tinha o costume de anotar as datas de nascimento, a não ser que se tratasse de reis ou personagens de famílias nobres; e Jesus não era nem um rei nem um nobre.

Mesmo assim é um dos personagens da antiguidade sobre os quais temos o maior número de informações, mais do que Alexandre Magno, os faraós, etc. A informação segura sobre Jesus é quanto ao ano, mas não em relação ao dia. Como é que, então se chegou ao dia 25 de Dezembro?

O significado é mais teológico e espiritual do que cronológico. O fato é que em Roma a grande parte dos soldados cultuavam o deus Mitra que representava o sol nascente; este deus era celebrado de uma forma muito especial no “solstício de inverno” (22 de Dezembro), obviamente lá no hemisfério Norte é inverno, quanto no Brasil é verão.

Nesse dia o sol parece “se esconder” por dois dias para depois “renascer” no dia 25 de Dezembro. Ora, sabemos com segurança que a grande parte dos primeiros cristãos era de origem militar; ao aderir a Jesus Cristo, a fé deles os levou a dizer que o “verdadeiro sol nascente”, aquele que dá a verdadeira vida, a vida que não termina – como, ao contrário, termina a casa dia o percurso do sol que vai desaparecendo num carro de fogo – é Cristo.

Testemunho disso é um maravilhoso mosaico que se encontra numa necrópole em Roma e que representa Cristo no lugar do deus Mitra (que segundo a mitologia antiga era conduzido por dois cavalos brancos até o Ocidente). Mas qual o significado mais profundo do Natal? São inúmeros os valores que esta solenidade nos apresenta, gostaria apenas de salientar uma, aquela que tanto marcou o apóstolo João.

Na época em que nasceu Jesus a convicção comum era que o homem pudesse de algum modo não perder-se nos braços da morte se, através de práticas de conhecimento, de contemplação, de austeridade, enfim, se fizesse uma série de esforços suficientes a elevar a sua alma para que esta pudesse ficar o mais possível perto de Deus. Sim, nada de errado, mas essa visão tem um grande problema de fundo: deixará sempre uma frustração, pois o homem, mesmo empreendendo tal caminho de “purificação”, de “elevação espiritual”, bem no fundo já sabe que a sua é uma causa perdida, pois nunca o que humano pode alcançar o que é divino. Se assim fosse o homem seria divino.

Logo, por essas práticas o caminho espiritual torna-se uma série de esforços da “mente” e da “moral” para tentar alcançar aquilo que já se sabe de não poder alcançar! Mas eis que aqui acontece o paradoxal. Sim, o homem pode tornar-se “divino”. O seu relacionamento com Deus não será apenas um esforço de auto-aperfeiçoamento sem resultado final.

Sim, o paradoxo se tornou real a partir do momento em que Deus inverteu o processo: não é homem que tenta chegar a Deus, mas é Deus que escolhe o homem, qualquer homem, e vai a ele assim como ele é.

Deus escolhe aquilo que os homens não gostariam de ver de si mesmo, ou seja, tudo aquilo que é frágil, incapaz, conturbado, contraditório, enfim, tudo aquilo que na antiguidade era chamado de “carne” em oposição a “espírito”  que indicava a parte “melhor” do homem. O homem livre das paixões, projetado no mundo “das ideias” onde tudo é perfeito.

Pois é, Deus escolheu encontrar o homem lá aonde todo homem vê claramente a si mesmo: na sua fragilidade. É lá que realmente descobrimos quem somos e, enquanto o sistema cultural do mundo nos pede para fugir, esconder, fingir que não exista o nosso “problema”, é bem lá, na nossa “carne” que Deus se faz encontrar.

Jesus é o denominador comum entre tudo o que é humano e tudo o que é divino. Somos constantemente impulsionados a encontrar-se com a profunda humanidade e Jesus nos permite de nos encontrar com toda a divindade e, nessa fusão que parte do coração e alcança a vida inteira, a nossa natureza humana, limitada, condicionada ao tempo e ao espaço, pode transformar-se em algo inimaginável. Um “filho de Deus”!

Afinal, então, qual Natal estamos celebrando? Apenas o de Jesus ou também o nosso “nascer à vida divina em Jesus”?

Um feliz Natal, que Deus te abençoe.

Pe. Carlo Battistoni, FFCIM

(Religioso do Instituto das Filhas e Filhos do Coração Imaculado de Maria. Trabalha na Diocese de Ponta Grossa – Paraná como assessor Bíblico-Catequético da Ação Evangelizadora. É responsável pelo Centro Bíblico de Ponta Grossa e leciona Teologia Sistemática no Instituto de Filosofia e Teologia ‘Ecclesia Mater”)